domingo, 31 de julho de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XIV - C

Toda segunda-feira, um novo capítulo 

Capítulo 14 – C

Indícios

Pararam numa praça. O mendigo escolheu um banco e sentou-se. Enfiou a mão no bolso do paletó esfarrapado e tirou dinheiro:
- Vá até a padaria e traga comida. Peça o que quiser e o mesmo pra mim.
- Que dinheiro é esse?
- Sua porção mendiga ganhou um pouco, eu ganhei o resto. Comida, amigo, comida!
Daí a pouco, Paulinho Láparo voltou com embrulhos nas mãos e se esforçando para parecer nervoso. Sentou-se na outra ponta do banco e depositou os embrulhos entre os dois. Comeram em silêncio. O homem juntou as sobras e atravessou a praça para depositar tudo na única lixeira disponível. Retornando, acendeu dois cigarros. Ofereceu um para Paulinho Láparo.
- Obrigado, não fumo.
- E por que não?
- Me faz mal.
O homem deu uma gargalhada que encheu a praça.
- E que diferença faz? Você é um morto vivo. Tome.
Paulinho apanhou o cigarro e levou à boca. Puxou a fumaça e começou a tossir. E, tossindo, perguntou:
- Qual o seu nome?
- Escolha um pra mim.
- Bambu.
O homem apenas sorriu:
- Sou o Bambu, mas não quero um nome para você.
Paulinho tossia a fumaça do cigarro, mas pôde ouvir:
- Dariã é mesmo minha esposa. E o que vocês têm em comum é que são dois imbecis.
Mais uma vez, Magro não reagiu. Bambu puxou uma tragada comprida, expeliu a fumaça e continuou:
- O grande pensador turco Said-i-Nursi, de Nurs, Bitlis, disse certa vez:  “A humanidade tem três problemas: a discriminação, a pobreza e a ignorância. A discriminação pode ser resolvida com amor e compaixão. A pobreza, com a doação. A ignorância só pode ser solucionada com a educação”.
Mais uma tragada e um olhar demorado sobre Paulinho Láparo.
Na verdade, os dois formavam uma dupla estranha. Láparo, bem vestido, barbeado e limpo, aparentava um pobre coitado. Bambu, esfarrapado, sujo, barbudo, cabelo desgrenhado e fedendo, tinha uma postura altiva, segura e elegante.
- Você e Dariã encarnam o mais primitivo e reles dos problemas da humanidade. São preconceituosos, medem as pessoas pelo que possam parecer. A solução está no amor, mas ambos são incapazes de amar até a vocês próprios. A diferença entre os dois é que amo loucamente a Dariã, e você não é nada para mim.   
- Mas você é apenas um mendigo, e aquela senhora me parece uma dama abastada.
Outra vez a gargalhada do Bambu ecoou na praça:
- Você me facilita tudo, pois é o que acabou de dizer. E Dariã é a mesma coisa. Sou um mendigo, mas isso é o meu esconderijo, que carrego para onde vou. Minha aparência não deixa que minha esposa reconheça em mim nada do que sou. Assim, posso me aproximar dela, sem que me perceba. E digo-lhe, meu rapaz, eu a reconheceria por um fio de cabelo que fosse no meio de qualquer multidão. O que difere um ser humano de outro são apenas as atitudes; no mais somos todos iguais. E aqueles a quem amamos são como o diamante. Toda pedra se parece com um diamante. O diamante não se parece com pedra nenhuma. Dariã e você não são capazes de ver além de vocês mesmos. Nunca encontrariam um diamante.
Paulinho Láparo, o Magro, sentia as palavras de Bambu espetar-lhe a carne, mas, ao mesmo tempo, recebia delas um certo conforto. E permanecia calado, pois temia interromper o doloroso calor daquele sopro que o envolvia. No entanto, uma pausa mais longa o instigou:
- Ainda assim, ama Dariã?
- Desafio a vida e venço. Às vezes, faço concessões ao tempo. Então, veio o amor! Como um tsunami, devastou tudo e, naquela amplidão vazia do meu peito, fez nascer a mais bela flor que jamais existiu. Aquele perfume, sua cor e a beleza povoaram meu universo inteirinho... Flores são efêmeras... E têm espinhos, muitos espinhos!
Bambu acendeu outro cigarro no toco do primeiro... Uma tragada... Baixa o cigarro e abre a boca. A fumaça se liberta como quer. Termina o cigarro e fala, sem olhar para Paulinho: 
- O amor é meu carrasco... Concedo-lhe meu pescoço ao menor aceno, servilmente!
- Você desafia a vida e vence, disse Paulinho, sem disfarçar a ironia.
- Sim, mas o amor não pertence à vida. A vida se recolhe para o amor tomar o peito. A insanidade percebe o vácuo e se apossa do ser. Ainda sou um insano, mesmo tendo deixado Dariã. Prefiro a sede e a fome prolongadas ao meu amor por Dariã. A fome e a sede podem matar-me e dar fim a meu suplício. O amor me sustenta para que eu possa padecer.
Paulinho preferiu uma observação tola a ficar calado:
- Sua postura não é a de um homem devastado, como diz.
- Tenho um esconderijo, rapaz! E o carrego para onde vou... Saberá mais de mim...
Levantou-se e foi embora. Paulinho Láparo, o Magro, sentiu-se muito só. A praça pareceu-lhe enorme!


Continua no capítulo 14 - D

terça-feira, 26 de julho de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XIV - B

Toda segunda-feira, um novo capítulo 

Capítulo 14 – B

Elos

- O que tenho em comum com Dariã, aquela que diz ser sua esposa?
Paulinho endireitou-se, encostando toda a sua coluna na pilastra da igreja, como se recompondo estivesse, a fim de oferecer mais ares à sua irritação.
-  Diga!
O homem não tirava os olhos da mulher. De Dariã.
- Venho todos os domingos, apenas para vê-la. Foi o que disse.
Paulinho Láparo, o Magro, sentiu sua irritação crescer.
- O que aquela mulher e eu temos em comum? Diga agora!
O mendigo voltou-se para Paulinho. Seu olhar era duro e frio, mas as palavras soaram calmas:
- Você está dando ordem a um homem que é senhor de si mesmo. Não obedeço nem a mim... Se o fizesse, não estaria ao lado de um chatarra fedendo a orgulho que não tem. Me entregaria ao amor de Dariã. Trastejo, mas não me rendo. Dariã não merece o meu amor. A vida tem seus próprios desejos, que raramente são os mesmos que tenho. Domino os meus desejos e aqueles que a vida quer me enfiar goela abaixo. Eis o homem que sou! E você, que tipo de homem é? Diga-me apenas que se sente um homem e farei soar um Ezan atemporal e aqui mesmo, para recitar cânticos em seu louvor.
Pela segunda vez, Láparo ficara sem ação diante do homem. E, sem conseguir dizer as palavras que queria, apenas indagou:
- Desafia a vida?
- Desafio e venço. Há apenas uma verdade para cada ser humano: nascer e morrer. A vida é apenas a lacuna que existe entre os dois extremos. A vitória que a vida terá sobre mim, já está escrita, é imutável... A minha morte. No resto, mando eu. Às vezes, faço concessões ao tempo... Nunca à vida!
Paulinho tentou tomar as rédeas da conversa:
- Você tem prazer em ofender-me?
- Não, somente atendo a seus apelos.
Agora, já não era mais irritação. Um furor agarrou Paulinho pelo pescoço e o ergueu de onde estava. O homem continuou sentado, e Magro libertou sua ira.
- Escute aqui, seu resto de gente! Já estou de saco cheio de sua filosofia barata. Não diga como preciso ser ou sentir. Tome um banho e veja se junto com esse mau cheiro sai também essa pretensão idiota. Conversa fiada, cara! Não há maneira de viver, a não ser do jeito que se vive. Toda manhã é maravilhosa, até que você acorda e levanta. E aí, imbecil, é desviar das pedras. Sua vida é a sua vida, e a minha é a minha.
- Eu sou dono da minha vida.
- Dono, o caralho! Quem é você?
- Eu sou o dono da minha vida.     
Paulinho Láparo, o Magro, não suportou mais ficar perto do sujeito. Desceu a escadaria, como que escoltado pelas pessoas que deixavam a igreja naquele mesmo instante. Terminara o culto. Estava ofegante e irado. Não gostava de conselhos e de reprimendas. Era como se tratassem de suas feridas com pontas de agulhas.
Atravessou a rua e agarrou-se a um poste. Respirava virando a cabeça para um lado e outro, como se o ar estivesse em fatias. Cerrou os olhos e trancou os dentes. Uma mão bateu-lhe forte no ombro e uma voz chamou:
- Vem.
Chamou e seguiu em frente. Era o mendigo. Paulinho Láparo estava tomado de fúria e dúvida. Não sabia se a raiva que sentia era do mendigo ou de si mesmo, por estar seguindo o cara. Acelerou o passo para alcançar o maltrapilho.
- Pra onde?
- Vem. Você não é tão merda quanto pensei.
- Eu parecia merda?
- Ainda parece, só que menos do que pensei, a princípio.
- Vou acabar matando-o.
- Isso é fácil. Quero ver é não matar, depois de umas coisas que vou lhe dizer.  


Continua no capítulo 14 - C