domingo, 30 de janeiro de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo IV

Toda segunda-feira, um novo capítulo. 

Capítulo 4 - Sogno de vendetta

Cansado de buscar suas respostas através dos mestres e decidido a ter uma vida medíocre e anônima, Paulinho Láparo cochilava no sofá. A televisão ligada não chamava sua atenção. Pensamentos desconexos iam e vinham vagabundos em sua cabeça. Láparo não queria pensar. Evitava pensamentos e imagens. Todavia, não somos senhores de ideias e sentimentos. Doutor Q’roba disse, em mesa de bar, que, depois de certas emoções, o turbilhão da vida não nos permite a certeza de estarmos conscientes ou não, diante de nossos atos.
A moça da notícia disse que o bullying pode acontecer dentro de casa. Paulinho Láparo, o Magro, ergueu-se na rapidez de um gato e, de pé diante da televisão, se concentrou. A reportagem ensinava: “Quando um pai, uma mãe chamam seu filho de bobo, de feio, de gorducho ou invoca qualquer adjetivo que venha depreciá-lo, está praticando o bullying.”
Neném Cabecinha! O ódio renasceu dos pés e chegou às raízes dos seus cabelos. Neném Cabecinha! E via seu pai se mijando de rir e gritando aquele nome que o fazia ter sangue nos olhos, ânsia de matar! Quanto mais Paulinho Láparo se indignava, mais o seu pai se divertia ao chamar-lhe de Neném Cabecinha.
“Olhos do céu, olhos do céu. Não me abandonem em pleno voo”, pede a canção. E Paulinho Láparo diz: A maior solidão possível é estar sozinho diante de você mesmo”!
Não havia lado neutro na sua história pessoal. Todos e tudo contra ele. O sorriso do senhor de cabelos grisalhos ardeu como bofetada em sua face criança. O que pareceu um afago ruiu na sísmica provocação:
- Me vende seu boné? Sou colecionador e nunca vi um deste tamanho!
Que culpa poderia ter ele, Paulinho Láparo, o Magro, de ter nascido com uma cabeça tão grande?
O maior de todos os desejos estava ali em seu peito: queria seu pai vivo, apenas para matá-lo com as próprias mãos. Fale outra vez, fale! Você, seu pústula, não pode mais infernizar-me. Nunca mais! Vá agora apelidar filhos de Lúcifer!
O pensamento flutuou. Mestre Flam Boyant, o Seco-Florido... Neném Cabecinha é a puta que te pariu... dez chibatadas! Como entender esse triângulo desenhado à revelia da sua vontade?
Paulinho Láparo, o Magro, abriu a janela. Resistia à resignação de Hamlet:
“O veneno poderoso subjuga completamente meu espírito. O resto é silêncio.”
Nem tão silêncio assim, ruminou o Magro; a meu enterro, vou sozinho... contudo, gritando o meu pranto.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo III

Toda segunda-feira, um novo capítulo. 

Capítulo 3 - Cinzas do passado.

Três semanas! Três semanas se passaram e Paulinho Láparo, o Magro, ainda se sentia raivoso com a indiferença de Mestre Kire Dahin e triste com a sua reação, aquela explosão de raiva, imprópria para seus arraigados princípios morais. Sobretudo, era um homem de paz! Lembrou as palavras de Go Calan, o agiota, capaz de aniquilar com as próprias mãos um inadimplente, com o mais belo dos seus sorrisos nos lábios:
- Magro, a raiva é capaz de envenenar a sua alma e matá-lo. Portanto, use-a na direção contrária e deixe-a matar quem estiver à sua frente, principalmente um oponente ou devedor.
Láparo não concordava sequer com uma palavra do que dissera Go Calan, mas calou-se. Tinha ido até ele para pedir, mais uma vez, prazo para o pagamento de sua dívida. E Go Calan estava sorrindo. Voltou pensando naquelas economias de sua mãe. Sabia onde estavam escondidas. Láparo não gostava da ira de Go Calan, como repudiou a própria raiva. Mas a minha resposta? Cobrou-se Paulinho Láparo, o Magro, corroído pela dúvida atroz.
Tem que haver outro mestre. E tinha. Mestre Flam Boyant, o Seco-Florido. Como não pensei nele antes?
Três dias de caminhada, Paulinho Láparo, o Magro, exaurido, já pode ouvir mestre Flam Boyant:
- A frase é de Pablo Picasso, denominado assim pelos companheiros das saunas da quinta-feira: “Deus é um artista. Ele inventou a girafa, o elefante, a formiga. Na verdade, Ele nunca procurou seguir um estilo – simplesmente foi fazendo tudo aquilo que tinha vontade de fazer.”
E prossegue mestre Flam Boyant, o Seco-Florido:
- Quem disse que temos que fazer tudo certinho? Vamos resgatar nosso direito de ser medíocres. Deus, você e eu podemos errar. Deus errou, Ele também fez uma tremenda porcaria. Não fez? Hem? Não fez? Querem ver que fez? Olhem aquele que acaba de atravessar a porta deste templo da humildade: Neném Cabecinha! A prova de uma lambança de Deus.
Paulinho Láparo, o Magro, sentiu mil facas trespassarem seu corpo. Aqueles olhos eram aço de punhal, mas incapazes de vazar sua indignação:
- Neném Cabecinha é a puta que te pariu!
Ah! O silêncio mortal nunca foi tão silêncio, nunca foi tão pesado. Jamais, ali naquele templo da humildade de mestre Flam Boyant, o Seco-Florido, o silêncio fora tão açoite.
Láparo andejou errante, arrastando os pés. Fome, sede e vergonha. E dor! Dos lanhos do látego, dez chibatadas nas costas desnudas e em público? Não! Por ter ofendido o mestre? Não, nunca! Neném Cabecinha... Filho da puta! Quem era o mestre, na verdade? Ele o conhecia. De onde?
Quando começamos a percorrer nosso caminho, um grande pavor nos acontece. Mas ali não era pavor, era exaustão. Paulinho Láparo, o Magro, tateou seus passos e venceu a distância que havia. Às margens do rio das pedras, ele sentou-se e chorou. 

domingo, 16 de janeiro de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo II

Toda segunda-feira, um novo capítulo. 

Capítulo 2 - Indignação 

Três dias depois, Paulinho Láparo, o Magro, decidiu voltar à casa de mestre Kire Dahin. Ainda respeitoso, ao discípulo:
- Estive aqui outro dia e deixei uma mensagem para o honorável mestre. Algum resultado, uma resposta?
O discípulo atravessou a cortina de tiras de plástico. Trinta e cinco minutos depois, ainda mastigando:
- O mestre está em posição de repasto.
- Sim, tudo bem. E a minha mensagem escrita?
- Li para o mestre, o meu grande sol.
- Leu? Mas disse que o mestre é surdo... Como sabe se o mestre entendeu a minha angustiada mensagem?
- Não sei.
- Mas o mestre ao menos disse alguma coisa?
- Disse.
- Pelo amor de Deus, o que o honorável mestre disse?
- Não entendi, ele estava com a boca muito cheia. Avisei que o mestre se encontrava em posição de repasto.
- Mas o que é posição de repasto, por todos os deuses?
- Segurando um prato com arroz, feijão, farinha de mandioca, dois torresmos pururuca, um ovo frito, duas rodelas de tomate, quatro almôndegas... e comendo.
- Vou buscar uma grande mandioca para o mestre.
- Desnecessário! Aquele Que Mostra O Caminho tem tudo de que precisa. O alimento que está à sua disposição neste momento é suficiente para o abençoado dia de hoje.
- Não é para o mestre comer.
- Para quê, então?
- Vou enfiar a mandioca no rabo do filho da puta do seu mestre...

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo I

Toda segunda-feira, um novo capítulo. 


Capítulo 1 - Ao mestre, com esperança.


Paulinho Láparo, o Magro, entrou na casa modesta, embora fosse a residência de conhecido e sábio mestre. Foi recebido por um discípulo:
- Que deseja?
- Preciso falar com o mestre Kire Dahin!
O discípulo apenas afastou a cortina, deu uma olhada e disse:
- Impossível, agora. O mestre encontra-se em posição de lotus imerso em profunda meditação, que deve ser demorada.
- Como faço para falar com ele?
- Impossível. O mestre é completamente surdo. Deixe mensagem escrita e depois volte.
Paulinho Láparo escreveu o que desejava num pedaço de papel, depositou sobre a mesa e indagou:
- Quando o mestre lerá minha mensagem?
- O mestre não sabe ler.
- Então, como ele conhecerá o que escrevi?
- Eu leio para ele.
- Ah! Posso lhe fazer uma pergunta?
- Sim.
- Como você perdeu os braços?