domingo, 31 de julho de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XIV - C

Toda segunda-feira, um novo capítulo 

Capítulo 14 – C

Indícios

Pararam numa praça. O mendigo escolheu um banco e sentou-se. Enfiou a mão no bolso do paletó esfarrapado e tirou dinheiro:
- Vá até a padaria e traga comida. Peça o que quiser e o mesmo pra mim.
- Que dinheiro é esse?
- Sua porção mendiga ganhou um pouco, eu ganhei o resto. Comida, amigo, comida!
Daí a pouco, Paulinho Láparo voltou com embrulhos nas mãos e se esforçando para parecer nervoso. Sentou-se na outra ponta do banco e depositou os embrulhos entre os dois. Comeram em silêncio. O homem juntou as sobras e atravessou a praça para depositar tudo na única lixeira disponível. Retornando, acendeu dois cigarros. Ofereceu um para Paulinho Láparo.
- Obrigado, não fumo.
- E por que não?
- Me faz mal.
O homem deu uma gargalhada que encheu a praça.
- E que diferença faz? Você é um morto vivo. Tome.
Paulinho apanhou o cigarro e levou à boca. Puxou a fumaça e começou a tossir. E, tossindo, perguntou:
- Qual o seu nome?
- Escolha um pra mim.
- Bambu.
O homem apenas sorriu:
- Sou o Bambu, mas não quero um nome para você.
Paulinho tossia a fumaça do cigarro, mas pôde ouvir:
- Dariã é mesmo minha esposa. E o que vocês têm em comum é que são dois imbecis.
Mais uma vez, Magro não reagiu. Bambu puxou uma tragada comprida, expeliu a fumaça e continuou:
- O grande pensador turco Said-i-Nursi, de Nurs, Bitlis, disse certa vez:  “A humanidade tem três problemas: a discriminação, a pobreza e a ignorância. A discriminação pode ser resolvida com amor e compaixão. A pobreza, com a doação. A ignorância só pode ser solucionada com a educação”.
Mais uma tragada e um olhar demorado sobre Paulinho Láparo.
Na verdade, os dois formavam uma dupla estranha. Láparo, bem vestido, barbeado e limpo, aparentava um pobre coitado. Bambu, esfarrapado, sujo, barbudo, cabelo desgrenhado e fedendo, tinha uma postura altiva, segura e elegante.
- Você e Dariã encarnam o mais primitivo e reles dos problemas da humanidade. São preconceituosos, medem as pessoas pelo que possam parecer. A solução está no amor, mas ambos são incapazes de amar até a vocês próprios. A diferença entre os dois é que amo loucamente a Dariã, e você não é nada para mim.   
- Mas você é apenas um mendigo, e aquela senhora me parece uma dama abastada.
Outra vez a gargalhada do Bambu ecoou na praça:
- Você me facilita tudo, pois é o que acabou de dizer. E Dariã é a mesma coisa. Sou um mendigo, mas isso é o meu esconderijo, que carrego para onde vou. Minha aparência não deixa que minha esposa reconheça em mim nada do que sou. Assim, posso me aproximar dela, sem que me perceba. E digo-lhe, meu rapaz, eu a reconheceria por um fio de cabelo que fosse no meio de qualquer multidão. O que difere um ser humano de outro são apenas as atitudes; no mais somos todos iguais. E aqueles a quem amamos são como o diamante. Toda pedra se parece com um diamante. O diamante não se parece com pedra nenhuma. Dariã e você não são capazes de ver além de vocês mesmos. Nunca encontrariam um diamante.
Paulinho Láparo, o Magro, sentia as palavras de Bambu espetar-lhe a carne, mas, ao mesmo tempo, recebia delas um certo conforto. E permanecia calado, pois temia interromper o doloroso calor daquele sopro que o envolvia. No entanto, uma pausa mais longa o instigou:
- Ainda assim, ama Dariã?
- Desafio a vida e venço. Às vezes, faço concessões ao tempo. Então, veio o amor! Como um tsunami, devastou tudo e, naquela amplidão vazia do meu peito, fez nascer a mais bela flor que jamais existiu. Aquele perfume, sua cor e a beleza povoaram meu universo inteirinho... Flores são efêmeras... E têm espinhos, muitos espinhos!
Bambu acendeu outro cigarro no toco do primeiro... Uma tragada... Baixa o cigarro e abre a boca. A fumaça se liberta como quer. Termina o cigarro e fala, sem olhar para Paulinho: 
- O amor é meu carrasco... Concedo-lhe meu pescoço ao menor aceno, servilmente!
- Você desafia a vida e vence, disse Paulinho, sem disfarçar a ironia.
- Sim, mas o amor não pertence à vida. A vida se recolhe para o amor tomar o peito. A insanidade percebe o vácuo e se apossa do ser. Ainda sou um insano, mesmo tendo deixado Dariã. Prefiro a sede e a fome prolongadas ao meu amor por Dariã. A fome e a sede podem matar-me e dar fim a meu suplício. O amor me sustenta para que eu possa padecer.
Paulinho preferiu uma observação tola a ficar calado:
- Sua postura não é a de um homem devastado, como diz.
- Tenho um esconderijo, rapaz! E o carrego para onde vou... Saberá mais de mim...
Levantou-se e foi embora. Paulinho Láparo, o Magro, sentiu-se muito só. A praça pareceu-lhe enorme!


Continua no capítulo 14 - D

terça-feira, 26 de julho de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XIV - B

Toda segunda-feira, um novo capítulo 

Capítulo 14 – B

Elos

- O que tenho em comum com Dariã, aquela que diz ser sua esposa?
Paulinho endireitou-se, encostando toda a sua coluna na pilastra da igreja, como se recompondo estivesse, a fim de oferecer mais ares à sua irritação.
-  Diga!
O homem não tirava os olhos da mulher. De Dariã.
- Venho todos os domingos, apenas para vê-la. Foi o que disse.
Paulinho Láparo, o Magro, sentiu sua irritação crescer.
- O que aquela mulher e eu temos em comum? Diga agora!
O mendigo voltou-se para Paulinho. Seu olhar era duro e frio, mas as palavras soaram calmas:
- Você está dando ordem a um homem que é senhor de si mesmo. Não obedeço nem a mim... Se o fizesse, não estaria ao lado de um chatarra fedendo a orgulho que não tem. Me entregaria ao amor de Dariã. Trastejo, mas não me rendo. Dariã não merece o meu amor. A vida tem seus próprios desejos, que raramente são os mesmos que tenho. Domino os meus desejos e aqueles que a vida quer me enfiar goela abaixo. Eis o homem que sou! E você, que tipo de homem é? Diga-me apenas que se sente um homem e farei soar um Ezan atemporal e aqui mesmo, para recitar cânticos em seu louvor.
Pela segunda vez, Láparo ficara sem ação diante do homem. E, sem conseguir dizer as palavras que queria, apenas indagou:
- Desafia a vida?
- Desafio e venço. Há apenas uma verdade para cada ser humano: nascer e morrer. A vida é apenas a lacuna que existe entre os dois extremos. A vitória que a vida terá sobre mim, já está escrita, é imutável... A minha morte. No resto, mando eu. Às vezes, faço concessões ao tempo... Nunca à vida!
Paulinho tentou tomar as rédeas da conversa:
- Você tem prazer em ofender-me?
- Não, somente atendo a seus apelos.
Agora, já não era mais irritação. Um furor agarrou Paulinho pelo pescoço e o ergueu de onde estava. O homem continuou sentado, e Magro libertou sua ira.
- Escute aqui, seu resto de gente! Já estou de saco cheio de sua filosofia barata. Não diga como preciso ser ou sentir. Tome um banho e veja se junto com esse mau cheiro sai também essa pretensão idiota. Conversa fiada, cara! Não há maneira de viver, a não ser do jeito que se vive. Toda manhã é maravilhosa, até que você acorda e levanta. E aí, imbecil, é desviar das pedras. Sua vida é a sua vida, e a minha é a minha.
- Eu sou dono da minha vida.
- Dono, o caralho! Quem é você?
- Eu sou o dono da minha vida.     
Paulinho Láparo, o Magro, não suportou mais ficar perto do sujeito. Desceu a escadaria, como que escoltado pelas pessoas que deixavam a igreja naquele mesmo instante. Terminara o culto. Estava ofegante e irado. Não gostava de conselhos e de reprimendas. Era como se tratassem de suas feridas com pontas de agulhas.
Atravessou a rua e agarrou-se a um poste. Respirava virando a cabeça para um lado e outro, como se o ar estivesse em fatias. Cerrou os olhos e trancou os dentes. Uma mão bateu-lhe forte no ombro e uma voz chamou:
- Vem.
Chamou e seguiu em frente. Era o mendigo. Paulinho Láparo estava tomado de fúria e dúvida. Não sabia se a raiva que sentia era do mendigo ou de si mesmo, por estar seguindo o cara. Acelerou o passo para alcançar o maltrapilho.
- Pra onde?
- Vem. Você não é tão merda quanto pensei.
- Eu parecia merda?
- Ainda parece, só que menos do que pensei, a princípio.
- Vou acabar matando-o.
- Isso é fácil. Quero ver é não matar, depois de umas coisas que vou lhe dizer.  


Continua no capítulo 14 - C

terça-feira, 24 de maio de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XIV - A

Toda segunda-feira, um novo capítulo

Capítulo 14 A – Adro

 
- Dariã... Dariã!
Paulinho Láparo olhou na direção do homem que se exprimira assim. Aquele homem sujo e malcheiroso a seu lado.
Durante anos de sua vida, Paulinho Láparo, o Magro, levou consigo o desejo de percorrer a pé o caminho francês até Santiago de Compostela, partindo de Lorca Sainte-Marie.  Era a sua esperança de obter algumas respostas para as perguntas que o angustiavam, através do que pudesse vir a conhecer de si mesmo. A opção pelo caminho francês, além de ser o mais popular entre os peregrinos de Compostela, escondia uma possibilidade. Em Burgos, mediria coragem, conveniência e desejo de ir até Aranda de Duero. Na verdade, não pensava em chegar até a cidade. Entre a rodovia e Aranda, estava o hotel Tudanca-Aranda II, um confortável e barato “dois estrelas”, que, além de oferecer repouso aos viajantes, deixava à disposição destes a oportunidade de deliciar-se com os sabores fermentados na importante região vinícola espanhola. Uma das camareiras do hotel era... Anelize. Ali morava também a sua filha.
Paulinho Láparo, o Magro, retornou muito pior do que quando partiu. Sentia-se um farrapo humano.
O dia ainda nem estava para nascer quando subiu a escadaria da igreja. Sentou-se no cimento frio. Recostou-se na pilastra e cerrou os olhos. Sua solidão ecoou no silêncio da madrugada. Láparo não dormiu. Esvaiu-se. Sua mente mergulhou no nada e lá ficou.
O movimento do homem sentando-se ao seu lado recuperou-lhe a consciência. Láparo olhou para ele. Um homem alto, delgado, cabelos e barbas longos. A roupa não estava rota, porém extremamente suja, e aquele homem concentrava em si um cheiro absolutamente nauseabundo. Paulinho não esboçou nenhuma reação. Apenas voltou a cerrar os olhos. Sua alma fedia mais.
- Dariã... Dariã!
Paulinho Láparo olhou na direção do homem que se exprimira assim. Aquele homem sujo e malcheiroso a seu lado.
Sem que Paulinho percebesse, o dia já estava claro. Pessoas em quantidade passavam por ele e pelo mendigo e entravam na igreja. Gente bem vestida, de boa aparência e ar arrogante.
Magro se surpreendeu. No seu colo e caindo na base do vão das suas pernas entreabertas, algumas moedas e várias cédulas de dinheiro. O homem ao lado tinha um chapéu com a boca virada para cima e com dinheiro dentro.
- Eu não sou mendigo – disse Láparo, envergonhado.
- Não, mesmo! Você não é digno de ser um mendigo. Passe seu dinheiro para o meu chapéu e sinta-se melhor.
Paulinho lembrou-se que não comia há um dia e não tinha um tostão. Fez menção de recolher o dinheiro...
- Ainda, não. Deixe que atraia mais. Depois decide o que faz com ele.
E as pessoas continuavam a jogar dinheiro para Paulinho Láparo e o outro homem.
Duas mulheres elegantemente vestidas, porte altivo, conversavam paradas a alguns metros da porta da igreja. O mendigo virou-se para Paulinho:
- Vê aquela mulher maravilhosa de vestido azul-claro?
Paulinho viu.
- É a minha esposa. Dariã. Mãe de três filhos meus.
Paulinho apenas reagiu mecanicamente, olhando-o nos olhos, sem dizer nada, porém. O homem disse:
- Ela é como você!
- E como eu sou? – indagou o Magro.
- Você se envergonhou quando percebeu ter sido confundido com um mendigo pelas pessoas que entraram na igreja. Suas roupas estão limpas, você está lavado e barbeado. E você pensa que ser mendigo é estar sujo, dentro de um monte de roupa suja.  Mas você é um monumento vivo à indignidade humana. Você é um mendigo de si mesmo. E somente você pode lhe dar o que deseja e pede: autopiedade. Tudo que quer é sentir pena de você mesmo. Isso faz de você o farrapo humano que é e sente que é. Exatamente a visão que as pessoas têm dos mendigos: pobres coitados.
Paulinho Láparo, o Magro, não conseguiu sentir nenhuma emoção. Apenas perguntou:
- E que tenho em comum com aquela que diz ser sua esposa?
O homem sujo e malcheiroso olhou para a mulher maravilhosa de vestido azul-claro que conversava com outra diante da porta central da igreja, na luminosa manhã de domingo. Murmurou baixinho:
- Dariã...


Esta história terá sequência no capítulo 14 – B.  

domingo, 10 de abril de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XIII

Toda segunda-feira, um novo capítulo

Capítulo 13  -  Poças


Alhures, 10 de abril de 2011

Anelize,

Sei que você está bem. O sol não se atreveria a nascer, se não estivesse absolutamente certo da luz que você emana, quando está radiante. O astro-rei necessita desta luz para completar a própria e, ambos, serem capazes de iluminar a vida na Terra. Hoje está dia claro e céu azul, que é o dos seus olhos. Mesmos olhos que, à noite, são pouso de estrelas e luar.
Querida, infelizmente, a moeda tem duas faces. A outra é a minha vida, que, sem você a meu lado, não existe. Não consigo vislumbrar os caminhos que descruzamos e nos afastaram. Vivo um dia após o outro, soprando rapidamente o ontem do meu viver e ansiando pelo amanhã. Talvez, nele possa estar você.
Estou perdido em recordações. Revivo cada segundo do dia em que a conheci. Depois, entendi que a amava quando vi um pequeno atraso ser suficiente para enegrecer meu coração com a possibilidade da sua indiferença.
Ah! Quando descobri meu amor por você, descobri também como é delicioso ser tolo. Você notou a carpa diferente das demais:
- Bela, como uma pintura de Deus!
Da ponte, saltei vestido e sem pensar para a água verde do lago do parque. Seu espanto a fez tão linda!
- Que isso, meu Deus?
- Quis pegar a carpa pra você!
Sua risada impediu que me sentisse ridículo.
Éramos como pedras da nascente de um rio: toscas, brutas, ásperas e disformes. Felizes! Amor supremo! Infinito... Posto que é chama? O fio da vida nos fez rolar pelo rio do nosso amor. Fomos nos aparando. À foz, chegamos lapidados, polidos, mas desbotados. E, oh, dor! Separados. Aos poucos, nossos encontros nos transformaram. Inexplicável. Eram tão intensos! Nos amávamos tanto!
E você se foi. No instante que meus olhos perderam os seus, voltei-me e caminhei sobre os meus passos. Tinha que reviver o momento em que descobri ser louco por você. Não se entra duas vezes no mesmo rio.
Hoje, minha vida é silêncio. Silêncio que fere e não conta o porquê. Mas é silêncio, na espera da sua risada. Se ela um dia vier, não será mais.
Anelize, sou eu. Aquele que um dia teve o quis, o sim e seus ais de prazer.
A saudade é espessa, inquilina da minha dor. A solidão se confessa. E, mesmo que acabe... 
A primeira face da moeda é você, Anelize. Sua vida, seu riso, seus lugares... sua distância. E sabe de uma coisa, querida? Não duvido do seu amor por mim. Existem dois mais tolos que nós?
Da minha parte, a tolice me conduz a uma obediência constrangida. Espero a chuva cair. Saio às ruas contando poças. Para ver meu céu, abaixo a cabeça. Gongórica sentença de um tribunal que condenou um coração ao rés da sarjeta, sem conhecer seus sonhos de amor.
Assim, me despeço, deixando o meu beijo à espera do seu.
Com amor...

As lágrimas molharam o papel, gota a gota. Nasceram na primeira palavra e cresceram na angústia que invadia o peito, a cada letra. Mais uma vez não conseguira falar de sua filha. É impossível enviar uma carta assim.
Paulinho Láparo, o Magro, olhou a rua. Não pôde ver o luar chamando os namorados. O pranto fez cortina. O sono encerrou a cena! 

domingo, 27 de março de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XII

Toda segunda-feira, um novo capítulo

Capítulo 12 - Mão

A música era a senha. Magro nunca sentiu o coração sangrar por perda de amor. Sentia-se emocionado, porém, cantarolando a bela canção. Se não houvesse como executar a música em algum aparelho, cantava baixinho, ou mesmo mentalmente. Imaginava-se extremamente magoado pelo abandono de uma mulher. Aquilo o excitava.  Excitado, entregava-se ao vício solitário. Iludia-se, pensando que podia ter a mulher que quisesse, enquanto manuseasse a própria volúpia.
O amigo Barba Lé era impiedoso:
- Na verdade, meu caro Magro, você vivencia a grande ilusão do homem: imagina que transa com a mulher que deseja e, no fim das contas, está é com um cacete na mão!
Meio estranho de amar, no entanto, presente na vida de Paulinho Láparo, o Magro.
Quando retornou da viagem, embora cansado e confuso, Magro trazia nos olhos a paz do sono de uma brisa. Desejando o aquietamento do Antar Mouna, pediu ao amigo Barba um canto para recolher-se do burburinho da vida.
Percorreu com Barba várias casas da propriedade e escolheu a mais isolada, uma velha cabana, na fazenda Lareda.
O reino de Barba Lé é a fazenda Lareda, município de Pedra Brilhante, rica de muitas águas, de terra boa e de pedra cara. Sua localização no mundo está na cabeça de quem mora lá, lá esteve ou já ouviu falar. Sendo rica de muitas águas, fica perto de três rios que correm para o mesmo rumo. É fácil de achar. Um dia, Barba Lé, um gringo americano abutelado e de cara vermelha, comprador de pedra cara, viu a mulher lavando roupa na água do córrego que cortava as cercanias da casinha afastada. Sem ser notado e empaudurado, ficou admirando a figura de cócoras, a saia enfiada entre as pernas cobrindo o principal, mas deixando boas cobiças de fora. Torós de pernas de cor por igual, da cor um pouco mais escura do que um jambo e, aos olhos, de pele lisa. Divina Goela Abaixo, assim conhecida por ter adicionado ao trivial da função uma especialidade aprovada e decantada pela peonada da região, ainda tinha muito resto da beleza que ostentou um dia. Lida de puta gasta a carne, come a boniteza e rói por dentro, mas, àquela altura da vida, Divina ainda catava olhares e fazia desejos. Barba sabia de quem se tratava. A contemplação do homem acordou o macho. Propôs negócio e acabou na cama com Divina Goela Abaixo. Meio da tarde, ela descansada das batalhas da noite anterior e satisfeita com o tipo raro de cliente, mostrou todas as habilidades e honrou todas as famas. Competência frutificada: Barba voltou à noite e retornou tantas vezes, que acabou ficando. Espantou a clientela avulsa, exclusivou-se e passou a bancar a mulher de variação. Divina agora era só dele e queria ver se tinha algum macho para chamá-la de Goela Abaixo, após o amancebamento. O americano foi ficando em Pedra Brilhante, fez bons negócios e ganhou dinheiro. Descobriu a fazenda Lareda, em oferta. Praticamente não havia gradação entre as terras da pequena cidade de Pedra Brilhante e a propriedade de Barba Lé.
- Magro, esta cabana está apenas a milímetros além de um tugúrio!
- Pode ser esta, Lé?
Paulinho Láparo, o Magro, estava como queria. Recolhido, próximo do que necessitava e ao abrigo da generosidade do amigo. Poderia contar agora como conhecera Barba Lé. Mas tudo que Magro andava desejando era o silêncio. Em outra hora.
O Antar Mouna era necessário naquele momento. O silêncio interior interviria no processo de oscilação e de resgate do estado contraído, para o estado mais benevolente. Mas levava tempo. Magro sabia o que fazer, não antes, todavia, de restabelecer sua organização mental.
Vez ou outra, o americano visitava o amigo e levava-lhe suprimentos. Naquele dia, encontrou a porta entreaberta e Paulinho no afã dos amores contidos no vicio solitário. Afastou-se sem perturbar Láparo. Abrigou-se na sombra de uma grande árvore, deu tempo ao amigo e soltou as rédeas do pensamento.
Engraçado! Vendo Magro em intimidades solitárias, lembrou-se de que, certa vez, ocorreu-lhe que o amigo não falava em mulheres. Rodeios infindos após:
- Magro, você tem filhos?
- Uma!
- Que bom, cara!
Paulinho Láparo, o Magro, não deu chances:
- Vamos comer alguma coisa? Estou faminto!
Barba ficou, enfim, aliviado.
Julgando que Paulinho terminara, ainda teve o cuidado de sinalizar sua presença em alaridos de chegada.
Paulinho acorreu sorridente:
- Barba Lé, meu amigo, que coincidência! Ainda agorinha estava pensando em você.
- Pelo amor de Deus, Magro! Brinca, não!

domingo, 20 de março de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XI


Toda segunda-feira, um novo capítulo
 
Capítulo 11º - Mira

Mestre Flam Boyant, o Seco-Florido, não foi capaz de captar as centelhas de ódio no olhar de Paulinho Láparo, o Magro. Apenas deu vaza à casualidade do encontro de ambos em local tão distinto do leito natural de suas vidas. Voltou à piteira do narguilé que lhe cabia. Estava bêbado ou drogado. Ou os dois.
O ódio e a indignação de Cabecinha, ou melhor, de Paulinho Láparo, atingiram a patamares de arremesso. Ia saltar sobre Seco-Florido. Ofegante ao posicionar-se para o bote, indagou de Supo Zitório:
- Quem é você? Como sabia de Flam Boyant?
- Mestre Fulo Bravo, o Irado... Agora, cara? Quer usar todo o espaço do capítulo? Seu ódio vai esfriar. Ódio frio não passa de chilique de bicha. Firme, você é a morte diante de mestre Flam Boyant!
- Ele nem está ligando!
- Vou buscar Enoch Cani.
- Quem é Enoch Cani? Inquiriu Magro, buscando saliva na boca.
- Meu amigo. Agente funerário. Gosta de tomar as medidas do caixão com o cliente ainda vivo. Arrasa psicologicamente! Seu inimigo não vai ignorar isso.
Magro ignorou e deu dois passos na direção do mestre:
- Eu sou a morte diante de você, Mestre Flam Boyant, Seco-Florido de merda, vai morrer!
- Nunca duvidei disso.
- Agora! E nunca mais Neném Cabecinha...
Mestre Flam Boyant, o Seco-Florido, viu o ódio no olhar de Paulinho Láparo, o Magro, e encolheu em sua cadeira. Abriu a túnica e deixou à mostra o cabo de imenso sabre de prata:
- Algum problema em lhe chamar de Neném Cabecinha? Seu pai...
Paulinho Láparo sabia que Supo estava armado. Percebeu o volume sob a camisa do guia. Ergueu o tecido da roupa e apanhou o...
- O que é isso?
Supo, retomando o objeto:
- Um arenque.
- Arenque?
- Vou fazer um ensopado. Tenho que comer, amigo. Aqui está!
- Isso é o pão!
- Ah, sim, desculpe... Claro, um ensopado de arenque com pão... Uma delícia! Você limpa o arenque...
- A arma, Supo, a arma!
Supo colocou o parabelo na mão de Paulinho Láparo.
- Tomei de um alemão que matei na guerra...
Os olhos de Láparo buscaram Seco-Florido na névoa do narguilé.
O estampido estrugiu em círculos, enquanto a fumaça se adensava no ambiente fétido, escuro e apertado onde Supo Zitório se introduzira, levando com ele o Magro. Deu merda! Supo agarrou Paulinho pelo braço e o arrastou para fora.
A madrugada caia em Durrës. A garoa deixava as pedras da rua com um brilho abafado pela neblina. Afastaram-se rápido da tavernë. Foi fácil perderem-se na noite.
- Tenho que tirar você da Albânia, Láparo.
- Você viu onde acertei Flam Boyant?
- Vamos Láparo, rápido!
Magro estancou os passos. Deu um safanão e soltou-se da mão de Supo:
- O que houve? Não acertei?
- Acertou em cheio... Mas fechou os olhos cedo demais!
- O que isso quer dizer?
- Matou a pessoa errada.
Paulinho era fúria e ainda tinha na mão a arma. Saiu correndo na direção da taverna.
- Sem problema...
Supo percebeu o que Magro pretendia fazer. Alcançou Láparo e acertou sua nuca com o pacote do arenque.
Paulinho Láparo foi despertado pelo balanço do bote.
- Desculpe, amigo. Você não podia voltar lá.
- Tudo em vão!
A serenidade na voz de Supo Zitório era verdadeira, quando respondeu:
- Nenhum ato se isola em sua consequência!
- ...
- Você foi capaz de atirar no filho da puta.
- Mas matei o filho da puta errado.
- Ainda assim, um filho da puta.
- Como sabemos que ele era um filho da puta?
- Quem não é?
- E agora?
- A vida segue... Com um filho da puta a menos!