domingo, 27 de março de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XII

Toda segunda-feira, um novo capítulo

Capítulo 12 - Mão

A música era a senha. Magro nunca sentiu o coração sangrar por perda de amor. Sentia-se emocionado, porém, cantarolando a bela canção. Se não houvesse como executar a música em algum aparelho, cantava baixinho, ou mesmo mentalmente. Imaginava-se extremamente magoado pelo abandono de uma mulher. Aquilo o excitava.  Excitado, entregava-se ao vício solitário. Iludia-se, pensando que podia ter a mulher que quisesse, enquanto manuseasse a própria volúpia.
O amigo Barba Lé era impiedoso:
- Na verdade, meu caro Magro, você vivencia a grande ilusão do homem: imagina que transa com a mulher que deseja e, no fim das contas, está é com um cacete na mão!
Meio estranho de amar, no entanto, presente na vida de Paulinho Láparo, o Magro.
Quando retornou da viagem, embora cansado e confuso, Magro trazia nos olhos a paz do sono de uma brisa. Desejando o aquietamento do Antar Mouna, pediu ao amigo Barba um canto para recolher-se do burburinho da vida.
Percorreu com Barba várias casas da propriedade e escolheu a mais isolada, uma velha cabana, na fazenda Lareda.
O reino de Barba Lé é a fazenda Lareda, município de Pedra Brilhante, rica de muitas águas, de terra boa e de pedra cara. Sua localização no mundo está na cabeça de quem mora lá, lá esteve ou já ouviu falar. Sendo rica de muitas águas, fica perto de três rios que correm para o mesmo rumo. É fácil de achar. Um dia, Barba Lé, um gringo americano abutelado e de cara vermelha, comprador de pedra cara, viu a mulher lavando roupa na água do córrego que cortava as cercanias da casinha afastada. Sem ser notado e empaudurado, ficou admirando a figura de cócoras, a saia enfiada entre as pernas cobrindo o principal, mas deixando boas cobiças de fora. Torós de pernas de cor por igual, da cor um pouco mais escura do que um jambo e, aos olhos, de pele lisa. Divina Goela Abaixo, assim conhecida por ter adicionado ao trivial da função uma especialidade aprovada e decantada pela peonada da região, ainda tinha muito resto da beleza que ostentou um dia. Lida de puta gasta a carne, come a boniteza e rói por dentro, mas, àquela altura da vida, Divina ainda catava olhares e fazia desejos. Barba sabia de quem se tratava. A contemplação do homem acordou o macho. Propôs negócio e acabou na cama com Divina Goela Abaixo. Meio da tarde, ela descansada das batalhas da noite anterior e satisfeita com o tipo raro de cliente, mostrou todas as habilidades e honrou todas as famas. Competência frutificada: Barba voltou à noite e retornou tantas vezes, que acabou ficando. Espantou a clientela avulsa, exclusivou-se e passou a bancar a mulher de variação. Divina agora era só dele e queria ver se tinha algum macho para chamá-la de Goela Abaixo, após o amancebamento. O americano foi ficando em Pedra Brilhante, fez bons negócios e ganhou dinheiro. Descobriu a fazenda Lareda, em oferta. Praticamente não havia gradação entre as terras da pequena cidade de Pedra Brilhante e a propriedade de Barba Lé.
- Magro, esta cabana está apenas a milímetros além de um tugúrio!
- Pode ser esta, Lé?
Paulinho Láparo, o Magro, estava como queria. Recolhido, próximo do que necessitava e ao abrigo da generosidade do amigo. Poderia contar agora como conhecera Barba Lé. Mas tudo que Magro andava desejando era o silêncio. Em outra hora.
O Antar Mouna era necessário naquele momento. O silêncio interior interviria no processo de oscilação e de resgate do estado contraído, para o estado mais benevolente. Mas levava tempo. Magro sabia o que fazer, não antes, todavia, de restabelecer sua organização mental.
Vez ou outra, o americano visitava o amigo e levava-lhe suprimentos. Naquele dia, encontrou a porta entreaberta e Paulinho no afã dos amores contidos no vicio solitário. Afastou-se sem perturbar Láparo. Abrigou-se na sombra de uma grande árvore, deu tempo ao amigo e soltou as rédeas do pensamento.
Engraçado! Vendo Magro em intimidades solitárias, lembrou-se de que, certa vez, ocorreu-lhe que o amigo não falava em mulheres. Rodeios infindos após:
- Magro, você tem filhos?
- Uma!
- Que bom, cara!
Paulinho Láparo, o Magro, não deu chances:
- Vamos comer alguma coisa? Estou faminto!
Barba ficou, enfim, aliviado.
Julgando que Paulinho terminara, ainda teve o cuidado de sinalizar sua presença em alaridos de chegada.
Paulinho acorreu sorridente:
- Barba Lé, meu amigo, que coincidência! Ainda agorinha estava pensando em você.
- Pelo amor de Deus, Magro! Brinca, não!

domingo, 20 de março de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo XI


Toda segunda-feira, um novo capítulo
 
Capítulo 11º - Mira

Mestre Flam Boyant, o Seco-Florido, não foi capaz de captar as centelhas de ódio no olhar de Paulinho Láparo, o Magro. Apenas deu vaza à casualidade do encontro de ambos em local tão distinto do leito natural de suas vidas. Voltou à piteira do narguilé que lhe cabia. Estava bêbado ou drogado. Ou os dois.
O ódio e a indignação de Cabecinha, ou melhor, de Paulinho Láparo, atingiram a patamares de arremesso. Ia saltar sobre Seco-Florido. Ofegante ao posicionar-se para o bote, indagou de Supo Zitório:
- Quem é você? Como sabia de Flam Boyant?
- Mestre Fulo Bravo, o Irado... Agora, cara? Quer usar todo o espaço do capítulo? Seu ódio vai esfriar. Ódio frio não passa de chilique de bicha. Firme, você é a morte diante de mestre Flam Boyant!
- Ele nem está ligando!
- Vou buscar Enoch Cani.
- Quem é Enoch Cani? Inquiriu Magro, buscando saliva na boca.
- Meu amigo. Agente funerário. Gosta de tomar as medidas do caixão com o cliente ainda vivo. Arrasa psicologicamente! Seu inimigo não vai ignorar isso.
Magro ignorou e deu dois passos na direção do mestre:
- Eu sou a morte diante de você, Mestre Flam Boyant, Seco-Florido de merda, vai morrer!
- Nunca duvidei disso.
- Agora! E nunca mais Neném Cabecinha...
Mestre Flam Boyant, o Seco-Florido, viu o ódio no olhar de Paulinho Láparo, o Magro, e encolheu em sua cadeira. Abriu a túnica e deixou à mostra o cabo de imenso sabre de prata:
- Algum problema em lhe chamar de Neném Cabecinha? Seu pai...
Paulinho Láparo sabia que Supo estava armado. Percebeu o volume sob a camisa do guia. Ergueu o tecido da roupa e apanhou o...
- O que é isso?
Supo, retomando o objeto:
- Um arenque.
- Arenque?
- Vou fazer um ensopado. Tenho que comer, amigo. Aqui está!
- Isso é o pão!
- Ah, sim, desculpe... Claro, um ensopado de arenque com pão... Uma delícia! Você limpa o arenque...
- A arma, Supo, a arma!
Supo colocou o parabelo na mão de Paulinho Láparo.
- Tomei de um alemão que matei na guerra...
Os olhos de Láparo buscaram Seco-Florido na névoa do narguilé.
O estampido estrugiu em círculos, enquanto a fumaça se adensava no ambiente fétido, escuro e apertado onde Supo Zitório se introduzira, levando com ele o Magro. Deu merda! Supo agarrou Paulinho pelo braço e o arrastou para fora.
A madrugada caia em Durrës. A garoa deixava as pedras da rua com um brilho abafado pela neblina. Afastaram-se rápido da tavernë. Foi fácil perderem-se na noite.
- Tenho que tirar você da Albânia, Láparo.
- Você viu onde acertei Flam Boyant?
- Vamos Láparo, rápido!
Magro estancou os passos. Deu um safanão e soltou-se da mão de Supo:
- O que houve? Não acertei?
- Acertou em cheio... Mas fechou os olhos cedo demais!
- O que isso quer dizer?
- Matou a pessoa errada.
Paulinho era fúria e ainda tinha na mão a arma. Saiu correndo na direção da taverna.
- Sem problema...
Supo percebeu o que Magro pretendia fazer. Alcançou Láparo e acertou sua nuca com o pacote do arenque.
Paulinho Láparo foi despertado pelo balanço do bote.
- Desculpe, amigo. Você não podia voltar lá.
- Tudo em vão!
A serenidade na voz de Supo Zitório era verdadeira, quando respondeu:
- Nenhum ato se isola em sua consequência!
- ...
- Você foi capaz de atirar no filho da puta.
- Mas matei o filho da puta errado.
- Ainda assim, um filho da puta.
- Como sabemos que ele era um filho da puta?
- Quem não é?
- E agora?
- A vida segue... Com um filho da puta a menos!

domingo, 13 de março de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo X

Toda segunda-feira, um novo capítulo
  
Capítulo 10º - Pátria de ódio

Supo Zitório, o novo amigo de Paulinho Láparo, o Magro, era um especialista em criar situações constrangedoras. Gostava de frequentar locais obscuros e fétidos.
Viera de Durrës, cidade portuária do mar Adriático, na Albânia. Nunca estivera em Tirana, a capital. Desprezava  Kosovo, sem que sua ojeriza tivesse alguma causa ligada à cidade, ou à sua importância para a história contemporânea. Não, apenas fizeram-no corno, ali!
Orgulhava-se de um feito: com um único e simplório gesto, enlouquecera a velha tia Adana. Sua primeira vingança. Adana surpreendeu Supo durante a própria iniciação sexual, bem como da prima Stina. Quem deu ares de catástrofe ao episódio fora Adana. Dali para frente, a alegria da engelhada senhora era brandir seu parentesco com Enver Hoxha, o socialista, o fato de ser conterrânea de Agim Hushi, o consagrado tenor, e atazanar a vida do sobrinho.  Um universo de humilhações para Supo Zitório.
Parte da família de Supo, incluindo a tia, vivia na periferia de Kavajë, cidade interiorana do oeste albanês, a poucos quilômetros do mar Adriático. O traje permanente de Adana era um saião de linho cru. Surrado e puído, acabava sendo prático, já que não usava calcinha. Onde estivesse, atendia a vontade de urinar apenas abrindo as pernas e soltando-se. Para defecar, a velha senhora procurava as últimas sobreviventes das grandes florestas temperadas albanesas: as faias, que, aos pares com os carvalhos, delimitavam seu campo de resistência a poucos metros da sua casa – para esconder-se atrás dos troncos.Voltava com um molho de folhas, que espalhava entre as plantas do jardim. Ricas em tanino, as folhas de faia afugentavam pragas. Adana se posicionou para o alívio diário. Supo Zitório se antecipara à velha e aguardou atrás de outra árvore a manifestação fisiológica.  Aproximou-se sem nenhum ruído e apanhou as fezes com uma pá, antes que chegassem ao chão. Retirou-se sem que Adana percebesse sua presença. À indefectível conferência, onde estava a bosta? Certeza absoluta de que defecara. Fato é que Adana esvaiu-se em alucinadas dúvidas até o fim de seus dias. 
Para sobreviver, Supo prestava  assessoria a incautos, aliviando-os de parte de suas posses. Gostava de tomar rum e boza, alternando as doses de um e outro, e comendo arnavut cigëri, o apreciado fígado à albanesa. Certa feita, na mesquita Sheik Zamil Abdullah Al-Zamil, a imponente construção que projetou Shkodër como polo turístico europeu, Supo Zitório entrou completamente embriagado e gritando shtëpi,shtëpi, que, em albanês, quer dizer bordel. Conseguiu escapar para a cidade natal Durrës e, como clandestino de um navio cargueiro, deixou as terras balcânicas da Albânia, sem um único lekê sequer no bolso. Escapou das garras do diabo e voltou para ciceronear o Magro.
E ali estava Supo Zitório caminhando ao lado de Paulinho Láparo.
O sotaque era horrível, mas compreensível. Falavam a língua dos homens:
- E você, de onde é?
- Tenho uma terra natal a cada dia.
- Mas onde nasceu?
Paulinho Láparo sentia-se inebriado:
- Meu tédio morreu no beijo de Cidália. Ali nasci! Nascerei ainda mais vezes, quem sabe ao fim de outra trist... tristeza, não. As pessoas temem quem traz a tristeza na face.
- Nasceu de um beijo de puta. Você é um filho...
- Não diga, ou não caminha mais ao meu lado. Não que me ofenda, mas é constrangedor caminhar ao lado de um estúpido.
Era primavera, mas, para Paulinho Láparo, a brisa era fria. Partiram de Kavajë para Durrës. O primeiro trecho, fariam a pé. Paulinho Láparo queria contemplar o Adriático.
Valeu a pena. Do alto de um penedo, o Magro contemplou a imensidão adriática.
- Eis o mundo a seus pés, meu amigo.
Paulinho Láparo sorriu:
- Sempre, meu amigo... sempre!
Chegaram a Durrës à noite. Percorreram ruas e becos. Detiveram-se diante de uma tavernë.
Supo Zitório entrou na frente. O local era escuro, apertado e fedia. “Só pode dar em merda,” pensou Paulinho, que vinha logo atrás, no corredor estreito e mal-iluminado. Diante de uma porta, Supo Zitório voltou-se:
- Nosso encontro, meu amigo, não é um serendibiti. Beba no pote da sua vingança!
E abriu a porta. A sala era pequena. Oito belas mulheres em trajes sumários e provocantes, de pé. Oito homens assentados, cada qual portando um cachimbo de majestoso e ricamente ornamentado narguilé, o centro da roda e das atenções.
Entre os homens... mestre Flam Boyant:
- Neném Cabecinha!
Os olhos de Paulinho Láparo, o Magro, flamejavam a ira dos povos:
- Não... Sou o animal de carga do ódio!

domingo, 6 de março de 2011

A Saga de Paulinho Láparo, o Magro - Capítulo IX

 Toda segunda-feira, um novo capítulo
 
Capítulo 9º - Luzes


“Sensação estranha, essa.  Como se sombras estivessem me seguindo”, pensou Paulinho Láparo, o Magro. Não se sentia só, apenas um vazio imenso. De repente, Magro percebeu tudo. Podia resumir assim: ele não estava escrevendo nenhuma história, O que vivia não tinha sabor, não havia o que contar. Faltavam loucuras em sua vida. Todas as pessoas normais fazem loucuras. Por que ele não fazia? Há quanto tempo não me embebedo, por assim dizer?
A Boate Hollywood, Casa de Shows, tinha um amplo salão com duas filas de mesas e cadeiras nas laterais, contornando a pista de dança. As cores das lâmpadas se alternavam. A luz vermelha ardia um desejo sem dono, no peito do Magro.
Ao fundo, um palco. No lado oposto, o bar. A porta que dava para os quartos era dissimulada entre uma paisagem pintada na parede, perto do bar.
A iluminação no tom avermelhado era um truque para deixar as mulheres  ainda mais lindas. Nos dias de baile havia luz negra, destacando o branco de dentes, dos olhos e das roupas.
Àquela hora não havia mais ninguém no salão da Boate Hollywood. Apenas ele. As luzes se alternando em cores diversas, seu encanto crescendo à luz vermelha. Um homem se movimentava no bar. Foi até ele e pediu bebida. Segundos, minutos ou horas depois? Quem quer saber? Os eflúvios da embriaguês envolveram Paulinho Láparo. Do nada, surgiu ao seu lado a mais linda mulher que Paulinho já vira. A luz era vermelha, a mulher loura, de vestido preto e o perfume... um tapete mágico! Uma deusa! Sim, Deusa.
- Oi, quer me ver dançar?
Sem esperar resposta:
- Vou chamar Boneco Saci para dançar comigo. Ele é dançarino.
Da porta escondida na pintura surge um jovem negro de silhueta esgalga, vestindo terno branco. A gravata era vermelha.
- Dançarino, não. Bailarina!
Deusa subiu ao palco e desapareceu no poscênio. Em instantes uma música maravilhosa inundou o ambiente. As luzes do salão se apagaram.  Deusa e Boneco Saci se abraçaram no palco iluminado. O par de dançarinos evoluiu em passos perfeitos. Sua Deusa estava deslumbrante, sob as luzes da ribalta. 
A mulher com um corte provocante na lateral do vestido mostrava a coxa torneada. Usando o par como apoio, se contorcia no ritmo da música. Recostada no braço do dançarino, dobrava-se num arco de mulher. Os seios, apontando o alto, ensinavam a dimensão do desejo. Os cabelos dourados roçando o piso deixavam-na à altura da ânsia de Paulinho Láparo, o Magro. No embalo da melodia, sua perna surgia e se escondia na abertura da roupa, em acenos irresistíveis.
A paixão de Paulinho por Deusa crescia na mesma proporção em que sorvia goles sucessivos. A cada volta de Deusa no bailado voluptuoso, seu olhar cruzava com o de Paulinho. O sorriso de dentes perfeitos abriu o infinito no peito de Magro, descortinou o véu da quimera e prometeu a noite, entre todas as noites de amor.
Dance, doce melodia, acalme a volúpia que arde. Caiba tudo em um instante. Se um minuto passa, um segundo é tarde. Venha agora, minha Deusa, que a balada do tempo não para. Amor, sim, há. Ainda que sopro, assanha meu coração.
O perfume de Deusa retornou, espiralado em torno de Paulinho, como fumaça de cigarro. Tapete mágico! Magro entregou-se como se fosse uma folha seca. Flutuou no espaço. Éter de luzes, sons, sorriso de Deusa, senha de amor. Paulinho Láparo flutuava. Folha seca no ar... Por que ficou tudo escuro de repente? Onde estão as luzes e a música? Ah, as luzes voltaram, mas estão passando. A música ficou estranha... lembra sirene de ambulância!